Um ponto de costura pode contar uma história, entrelaçar-se em momentos e memórias. Linha e agulha podem encantar os olhos enquanto resolvem um problema prático. Um exemplo perfeito são os belos tecidos japoneses dos séculos XIX e XX, conhecidos como Boro.
Na antiguidade, os tecidos eram menos acessíveis do que são hoje. Remendos e retalhos preservavam e aumentavam a vida útil de uma roupa ou utensílio. Assim surgiu a técnica do Boro, definida pelo museu Victoria e Albert como a “prática de retrabalhar e reparar tecidos (muitas vezes roupas ou lençóis) através de remendos, retalhos e costuras, a fim de estender a sua utilização”.
As roupas e vestimentas cerimoniais dos camponeses do Japão medieval, chamadas “boro”, são amplamente admiradas como obras de arte. Seu tingimento índigo desbotado, costura sashiko e vários retalhos, encantam colecionadores e designers que buscam reproduzir o efeito em peças novas. A seguir, vamos tentar entender porque.
O que é Boro?
“Boro” é uma palavra japonesa que significa “trapos”. Eles usam o termo para definir um tecido que revela muito sobre o padrão de vida no Japão do século dezoito.
No prática do Boro, um pedaço grande de tecido é reparado com restos e trapos de outros tecidos. A peça é mantida e restaurada por várias gerações, aproveitando ao máximo sua vida útil. O resultado final destas camadas de tecido unidas por pontos largos é a história que existiu na de uma família e no contexto de um povo.
As pessoas costurando Boro viviam em uma situação onde tudo era valioso. Antes da Revolução Industrial, um tecido podia ser a coisa mais cara em uma casa. Nada era desperdiçado, conceito cada vez mais raro no consumidor moderno. O patchwork era uma prática puramente funcional, antes de ganhar fins decorativos na segunda metade do século 19, quando os tecidos se tornaram muito mais abundantes e acessíveis.
A História do Boro
Acredita-se que o Boro tenha surgido em Tohoku, região norte do Japão, área extremamente pobre durante o período Edo (1603 a 1868). As plantações mais próximas, ficavam a mais de 300 km de distância, e o clima frio impedia o cultivo de algodão e da seda, principais matérias primas para roupas.
No inverno congelante, boas roupas são questão de vida ou morte. A solução na província foi utilizar o cânhamo para fabricar tecidos. A escolha do azul foi porque o corante natural índigo ajuda a afastar os insetos. As mulheres, que participavam da plantação, colheita e processamento do cânhamo, também torciam os fios e tingiam as fibras, além de realizar a tecelagem. O produto final era precioso, resultado de muito suor e trabalho.
Estes tecidos tinham uma trama aberta, leve e arejada. Ideal para o verão, mas pouco adequada ao inverno. A solução criativa foi sobrepor várias camadas de tecido, recheadas com fibras emboladas. O método aumentava tanto a retenção de calor quanto a durabilidade das peças, que podiam ser remendadas.
Assim, o Boro foi a forma que roupas feitas com a função de sobrevivência tomaram naquela região inóspita. Fazendeiros extremamente criaram este belo tecido a partir da necessidade.
A evolução do patchwork Boro
A primeira ferrovia chegou ao norte do Japão em 1892, trazendo um pouco de algodão para a região na forma de restos de tecido e retalhos. Esse farrapos eram especiarias muito cobiçadas, excelentes para aumentar ainda mais a vida útil do tecido e deixar ele uma roupa ou cobertor um pouco mais quente.
O processo de aproveitamento deste algodão consistia em encharcar o tecido velho na mesma água usada para lavar arroz, soltando os fios que, em seguida, eram costurados por em camadas, para deixar qualquer peça mais resistente. O algodão também era cortado em tiras, para ser tecido uma segunda vez, em mesclas com cânhamo. Qualquer sobra era trançada, e virava uma faixa para os fazendeiros usarem na cabeça.
Todo e qualquer pedacinho de tecido era guardado com muito carinho. Uma caixinha cheia de farrapos puídos podia ser o dote de uma garota no casamento. A coisa mais valiosa na casa de uma família. A roupa era vida, muito mais valiosa do que dinheiro.
Quando não havia mais condição de aproveitar pedaços de tecido, eles finalmente eram iam para o fogo. Queimavam lentamente, e sua fumaça repelia insetos. O cânhamo plantado na terra virava tecido, que era transformado em roupas. Estas, usadas, se tornavam retalhos, aproveitados para restaurar outras roupas. No final da jornada, as cinzas voltavam ao solo para a próxima colheita.
A frugalidade e o amor pelo tecido estavam verdadeiramente enraizados na vida dessas pessoas, muito antes do conceito de reciclagem aparecer.
Apresentei a história e evolução do boro, patchwork japones, de forma bem resumida. Se você gosta do assunto, ou quer aprender a remendar seus tecidos com a técnica, seguem algumas sugestões de leitura:
A estética do patchwork japonês
O Japão é famoso pelas costuras geométricas. Curiosamente, elas surgiram da necessidade de fechar a trama aberta dos tecidos feitos em cânhamo. Hoje parecem obras de arte, mas essa sensibilidade artística foi se desenvolvendo a partir da necessidade de sobreviver.
Os poucos fios de algodão disponíveis eram utilizados para preencher os espaços entre a trama, e os pontos uniam os dois tecidos, protegendo o corpo. As costuras precisavam ser firmes, sem restringir o movimento.
Ao olhar para um Boro antigo, podemos imaginar várias pessoas, ao longo de gerações, costurando cada um destes pontos. Alguém vestiu uma roupas até ela desmanchar. Depois outro alguém que restaurou, e seguiu vestindo. É impressionante o esforço e o tempo gasto para fazer um pano durar mais! São duas, três, até mesmo quatro gerações reaproveitando o mesmo tecido.
A história por trás do Boro é uma história de pobreza e miséria; mas é um trabalho artesanal incrível. É difícil saber até que ponto podemos admirar as roupas dos menos favorecidos, sem que se torne desrespeito, mas é fato que o material demonstra consciência ecológica, técnica e emoção. Estes tecidos são obras de artes fantásticas.
Wabi-Sabi: O belo que é imperfeito, impermanente e incompleto
Estamos tão acostumados com as conveniências modernas e produtos descartáveis, que pensar que retalhos e pedacinhos de tecido são preciosidade pode ser uma triste lembrança de épocas passadas.
Mas será que a abundância e acessibilidade não nos fez perder de vista algo muito mais importante? Será que a vida não era mais vida quando as pessoas enfrentavam dificuldades, fazendo, cuidando e usando até o último grão tudo que tinham?
Obviamente, as condições hoje são muito melhores, mas olhar para trás e entender como surgiu o Boro é um visão interessante. O trabalho dessas famílias não foi motivado pelo ego, ou pela estética, muito menos pela vontade de criar algo belo. Não passam de objetos comuns, para uso no dia-a-dia.
Mesmo assim, dá para ver pelo posicionamento dos retalhos, a combinação de cores, e a linha das costuras tradicionais, que mesmo vivendo na extrema pobreza, essas pessoas tinham um carinho na hora de fazer as coisas, talvez para ter belos objetos para usar no dia-a-dia. O boro passa uma mensagem muito bonita sobre preservação, artesanato, a relação do homem com a natureza e talento, capaz de transformar abrigo em arte.
Somos indivíduos, mas não sobrevivemos sozinhos. Estamos aqui graças a nossos pais, nossos avós, e todos os que vieram antes. É uma beleza não intencional, fruto de várias mãos, que não pode ser atribuída a um artista só.
Patchwork Japonês na Moda Masculina
Tecidos antigos com várias camadas são incrivelmente caros, podendo custar mais de mil dólares fora do Japão. Em sua essência, ele é um tecido workwear: feito para trabalho, criado para durar. Esse legado foi aproveitado pela moda, que incorpora a estética principalmente em peças desse estilo.
O trabalho Boro feito em roupas modernas também costuma ser caro. A técnica é muito manual, e quase sempre o patchwork é feito com vários tecidos antigos ou únicos, encarecendo o processo, pois cada peça é um novo processo.
As marcas japonesas são as minhas favoritas, porque além do patchwork eles também costumam trazer outras técnicas tradicionais japonesas, como a costura sashiko e realmente várias camadas de tecido, ao invés de somente uma estampa.
bela história de tradição!vida é isso!….o fio da vida?é o fo da meada!….tudo por um fiapo! por gerações e gerações…..retalho sobre tetalho preso ponto a ponto!se reusando,se reciclando se renovando e preservando a cultura e a história de um povo.apaixonante!!!!!!!!!
Obrigado Alzira!
Fiquei muito impressionado com a história do boro e com seu texto. Dentre muitas partes, me impressionou a passagem que se refere ao boro na moda contemporânea japonesa, quando afirma se tratar mais do que mera apropriação estética. Belo história, belo texto.
Valeu, Raul!
Adorei a matéria! Com história, tradicionalismo, consciência e respeito a Natureza. Muita fineza….!
Obrigado, Rosangela =)