Uma palavra para descrever as Engineer Boots John Lofgren: intransigentes.
Já participei de projetos na criação de botas. Você não imagina o volume de variáveis na produção. Essas complicações fazem qualquer fábrica abrir mão de detalhes – aparentemente pequenos – para reduzir custos.
Na maioria das vezes, é um equilíbrio entre custos e elasticidade da demanda, mas não são raros casos onde produtores vão até o limite. Fecham um visual razoável e fazem o mínimo pra que as botas não caiam aos pedaços.
Já esse tal John Lofgren, ri na cara do perigo. A sua engineer é uma réplica com qualidade de objeto de museu, feita para fãs, de uma bota clássica da década de 1950. É uma imitação mais real do que aquilo que ela emula, cheia de exageros na qualidade, até nas coisinhas mais pequenas.
Sem atalhos, zero tentativas de deixar a bota com “preço do mercado”. É um produto criado por alguém obcecado por paixões que não tem nada a ver com qualquer coisa que lembre remotamente a moda.
Essa foto aí em baixo é da minha, com mais ou menos um ano e meio de uso. Talvez vocês reconheçam ela do vídeo sobre como limpar bota de couro:
O que é uma Engineer Boot
Criada para condutores de trens (chamados de railroad engineers), a Engineer Boot ganhou popularidade durante a Grande Depressão, na década de 1930. O cano alto protege contra o carvão em brasa e a ponta afiada de uma pá. Sem cadarços, não fica presa em partes móveis do maquinário. Em caso de acidente, é rápida de descalçar.
A silhueta mistura uma bota logger com uma bota de equitação inglesa. A principal característica são as duas tiras de couro com fivelas. Uma firma o tornozelo, e outra ajusta a boca do cano. Os mais tradicionais dizem que a única cor aceitável é o preto, mas as versões em couro natural chromexcel e overdye marrom também são muito bonitas.
Elas sumiram do mapa durante a Segunda Guerra Mundial porque as fábricas tiveram que fabricar coturnos militares. O estilo ficou esquecido depois da guerra até reaparecer nos pés da contracultura motociclista que ganhou força após a experiência com motos militares e a vivência em esquadrões de guerra, que levou ao início dos motoclubes.
Quem andava de moto na época viu na bota o mesmo potencial de proteção que a turma nas fábricas viu. Pra completar o pacote, o visual badass caiu como uma luva no visual “fora da lei”.
Tal como aconteceu com tantas peças clássicas no vestuário masculino, a imagem cool da Engineer Boot na contracultura chegou até o mainstream através de hollywood. Marlon Brando, em O Selvagem, botou a bota na imaginação da garotada da época.
Se você quiser saber mais sobre a história desse estilo, e conhecer algumas outras marcas além da John Lofgren, eu recomendo esse post sobre engineer boots.
A Engineer Boot John Lofgren
Eu li que o John Lofgren nasceu na Califórnia, mas passou a maior parte da vida viajando entre o Japão e os Estados Unidos. No vai e volta, forjou relacionamentos e descobriu os materiais para criar o melhor produto. Agora ele mora no Japão, é uma figura conhecida e bastante respeitadas entre os entusiastas do mundo vintage e das botas.
A Lofgren tem pouquíssimas botas na coleção. Se não me engano, são quatro estilos. O foco em cada um é muito maior do que em uma marca que administra coleções grandes e lançamentos a cada temporada. Nenhum detalhe passa desapercebido. Não há nada que não é do melhor.
O estilo vintage
O que essa bota tem de especial, além da qualidade, é o estilo. Não é tão difícil encontrar uma engineer boot, mas são poucas marcas fazendo versões clássicas.
A maioria das marcas no mercado trabalha com botas que parecem tratores. Pensa na Caterpillar mais pesada para trabalho, tira o cadarço e aumenta o cano. É isso. O bico é um bloco, o tornozelo gigante, as solas que lembram tratores. Eu não acho nem um pouco legal.
O visual que o John Lofgren segue é bastante específico de uma época. São botas com cara de antigas, assim como a Role Club do Brian The Bootmaker e a Road Champ do Mr Freedom. Essas duas marcas também são incríveis e seguem a estética da década de 1940 e 1930, enquanto o Lofgren fica mais para os anos 1950.
A Red Wing e Chippewa tem botas com estilo vintage. Existem outras opções super tradicionais, mas todas ficam para trás do que o John Lofgren criou. Eu diria que apenas a White’s e Wesco brigam de frente, e talvez a Viberg.
O formato dessa bota é inspirado pelas engineer dos anos 50, com vários detalhes que marcaram a época. O bico é mais baixo, o salto é “woodsman”, ela tem uma meia sola de couro, e até o posicionamento das tiras. As botas são realmente incríveis, e vieram em uma caixa maravilhosa que complementa perfeitamente o estilo da época.
Ficam muito legais com outras roupas que tem sinais específicos de épocas passadas, como essa calça Levi’s 501 1933 da foto acima ou um chino militar largo. Graças ao perfil slim, também ficam bacanas com roupas sem características tão retrô, como um jeans preto de boca mais justa e uma jaqueta de couro café racer.
O couro é especial
Lembro exatamente que, quando abri a caixa pela primeira vez, senti o cheiro inconfundível de couro Horween Chromexcel. É um couro extremamente macio, porém bem espesso. Ele é curtido mais vezes do que o normal, com taninos tanto vegetais quanto cromo.
O mais legal, no entanto, é que as peles usadas no cabedal são estendidas na vertical e depois tingidas de preto só de um lado. O normal hoje em dia é que esse tingimento seja feito em tambores, onde a cor penetra até o núcleo da pele. O que isso significa?
Significa que apenas a superfície do couro é preta. O interior continua na cor natural. A coloração original fica aparente nas extremidades e também na parte de dentro. Com o tempo, o preto começa a arranhar e ela pega um tom marrom.
Você já deve ter isso em coturnos e botas antigas, que pegam uma variação de cor bem legal que não acontece quando o couro é completamente tingido. Entra um pouco do que eu falei sobre um olhar que emula tudo o que há de especial no produto, fazendo dele uma versão moderna que turbina tudo o que um fã vê em uma bota antiga. A pátina no couro é legal, mesmo que o mercado de massa prefira o contrário.
Ah, apesar do cano da bota não ser forrado, a parte da frente é forrada em couro.
Solado duplo
A primeira camada da sola e do salto é feita com camadas de couro curtido em casca de carvalho. Não é madeira não, viu? Bota só tem sola de madeira se ela for uma merda.
O salto segue o estilo woodsman da década de 40. É um trabalho bem manual: o salto é montado com várias camadas de couro, que são polidas até ficar no ângulo certo. Eu acho que esses saltos altos e inclinados devem ter algo a ver com encaixe de equipamento ou com firmeza pra andar morro abaixo.
A segunda camada da sola e do salto são de borracha. A meia sola e o taco do salto são de Vibram 705 e Vibram 700, da origem americana (ele não compra da fábrica chinesa). A tração não é tão boa quanto a Vibram dentada, mas eu não tenho problemas na cidade nem estrada. Ela foi bastante testada na minha Road Trip pelos EUA.
Essa borracha da Vibram tem bastante resistência a abrasão e não marca. Ela também não é tão dura quanto outras solas ainda mais resistentes, mas eu prefiro assim. Não tenho um padrão de uso que demanda mais do que isso, e prefiro ganhar um pouco mais no conforto. O pisar é bem gostoso, dá pra sentir bem a absorção de impacto.
O tacão de borracha no salto é colado e preso por pregos para ficar bem firme. A sola de borracha é costurada a sola de couro por uma costura que passa no meio da sola.
Essa costura une as duas partes antes do solado ser costurado à vira, completando a construção goodyear welted. É um detalhe trabalhoso para prender melhor a camada de borracha. É bastante encontrado em botas vintage, mas raro hoje em dia.
Construção Goodyear Welted
Como eu disse, a bota tem construção Goodyear Welted. São duas costuras pra completar a fixação da estrutura.
A primeira, você não vê. Ela prende a tira de couro externa, chamada vira, ao cabedal e uma palmilha de montagem (feita com couro inglês). Essa palmilha vai se moldar ao seu pé com o tempo. Não tem nenhuma palmilha acolchoada, mas você pode colocar se quiser.
Antes de colar e costurar a sola, o sapateiro coloca um recheio de cortiça para amortecer e uma alma de aço (australiano) para dar suporte ao pé. Não repare, John Lofgren lista a origem de tudo que usa na bota.
A segunda costura é externa. É a que você vê saindo da vira e em baixo da sola, contornando a bota. Ela prende o solado na vira, que como eu falei, já está presa fixada na parte de cima da bota.
Como a costura da sola não perfura o interior da bota, ela não abre nenhum canal de entrada para a água. A construção é impermeável, e a água só pode entrar pelo cano ou pelas costuras do cabedal.
A vira que o Lofgren usa é feita com couro inglês. Repara como ela vira para cima na ponta que está perto da bota. Esse tipo de vira é chamada “storm welt” porque protege ainda mais da água. É uma liberdade criativa que deixa a bota dele única, porque não é um detalhe que aparece nas Engineer Boots vintage.
É uma construção bem firme. Tem muito mais camadas de couro e material entre o seu pé e o chão. Obviamente, a bota fica mais pesada e mais rígida do que uma bota que só é colada ou blaqueada. Com o tempo, ela vai amaciar e durar muito tempo sem risco nenhum de soltar.
Pra finalizar, o cabedal tem costura tripla nas áreas de muita tensão. As fivelas são de aço, lá da austrália. São fivelas fortes, nada aqui é frágil.
A costura que fecha o cano, é manual. Não deu para mostrar nas fotos, mas vou tentar explicar. Tá vendo esse pedaço de couro que protege o calcanhar e a tira que sobe na vertical, atrás do cano? Esses pedaços de couro não estão ali para compor a parte de trás da bota. Eles estão por cima do cano pra proteger e dar mais estrutura. O cano é uma única peça de couro que desce até a sola.
Por dentro, você não sente nenhuma costura na metade de trás da bota. A única que costura que dá para sentir é a que prende o cano a parte da frente. O bico, que começa na fivela de baixo. A costura manual fecha a chaminé do cano, e essa parte vertical que sobe atrás do calcanhar protege os pontos (que ficam aparentes no interior)
Isso aí! Essa foi a minha review da Engineer Boot John Lofgren, a minha favorita no mercado!
Existem outras marcas com qualidade neste nível, como a White’s, Wesco e talvez a Viberg… e até mesmo a Role Club que é toda palmilhada manualmente (não usa a máquina goodyear para completar a construção), mas nenhuma delas tem o pacote completo: visual + qualidade que a John Lofgren tem.
Espero que tenha gostado de conhecer a marca e ver a evolução do couro preto, já com a patina amarronzada. Se você quiser uma Engineer Boot com essa pegada, eu recomendo muito procurar por botas vintage. Se quer algo novo mais em conta, dá uma olhada na Chippewa. Para conhecer mais marcas, recomendo essa lista de botas engineer.