Denim

A Levi’s Contra o Mundo

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Em 2007 a Levi’s processou muita gente. Abriu um processo global contra um monte de marcas, grandes ou pequenas. Entre elas estavam algumas japonesas, especializadas em reproduções de jeans antigos. Na época, essas marcas eram as únicas que atendiam o nicho de clientes que queria produtos de extrema qualidade com todos os detalhes “autênticos”. Engraçado vir lá do Japão, mas a história do jeans no Japão é mais ou menos assim:

A relação entre os Estados Unidos e o Japão é bem interessante. O país derrotado na Segunda Guerra começou a admirar os Estados Unidos e os japoneses se interessam muito pela cultura americana, que chegou ao país através de filmes e músicas.

Os personagens rebeldes interpretados por atores como James Dean e Marlon Brando simbolizam o espírito americano, muito diferente da filosofia que reconstruiu o Japão e impulsiounou a economia na década de 70. A sociedade japonêsa não dava espaço para alguém viver com liberdade e aventura, mas as pessoas podiam aproveitar os dias de folga para “brincarem” de faz de conta.

Muitos começaram a perseguir coisas vintage feitas nos Estados Unidos, entre elas as calças jeans Levi’s. O amor pelo jeans aconteceu porque nenhuma outra roupa é mais USA do que uma calça jeans. Ter calça Levi’s e um carro americano era viver no universo de American Graffiti.

Cultura jovem no Japão, década de 70

Cultura jovem no Japão, década de 70

Observadores, eles começaram a reparar que o jeans da Levi’s que era vendido nas lojas não era o mesmo que as calças vintage que garimpavam, ou viam em revistas, filmes, etc. Essas pessoas identificaram algumas características das calças Levi’s feitas antes de um certo período e começaram a colecionar e revender, formando uma verdadeira subcultura de especialistas.

O mercado de entusiastas foi crescendo e as calças ficaram cada vez mais difíceis de encontrar. Os consumidores foram perdendo a paciência, cada vez mais descontente com a qualidade dos jeans novos, resolveram pesquisar mais ainda sobre calças vintage e a buscar uma maneira de reproduzir a qualidade que elas tinham para suprir essa demanda.

E foi assim que o Japão voltou os ponteiros do relógio e trouxe de volta o original american jeans. Hoje essas marcas são conhecidas como as “Repro Brands”, ou marcas que reproduzem. O objetivo era criar produtos com a mesma qualidade ou melhor do que a Levi’s fazia originalmente. Eles reproduziam detalhes abandonados e detalhes considerados autênticos pela comunidade, buscando maneiras de construir o jeans ideal.

Mikiharu Tsujita da Full Count, uma das “Osaka 5”

A marca mais antiga que conheço é a Studio D’Artisan, fundada em 1979. O grande boom veio mesmo no final da década de 80 e iníco de 90, com marcas como a Evisu, Denime e a Fullcount. Cada uma tinha o seu estilo, mais ou menos ousado, mas todas elas se mantiam fiéis às raízes do denim vintage. Esses entusiastas foram os responsáveis por salvar e reviver a industria têxtil de Okayama, que hoje é o maior polo de denim do Japão.

A terra sagrada do jeans

As marcas pioneiras prepararam o terreno para outras marcas japonesas que continuaram buscando novas técnicas de tinturua, explorar mais a história dos jeans, desenvolver novos tecidos, trazer de volta velhos cortes, e assim encantaram o mercado mundial. Encantaram inclusive o  mercado o americano, que sonhava com os ideais de épocas passadas. Foi assim que o jeans feito no Japão passou a simbolizar o que os Japoneses enxergavam nos americanos, e os nipônicos ficaram conhecidos por fazer “made in usa” melhor do que o USA.

E aí veio…

A “Levi’s contra o mundo” aconteceu em 2007. Os Estados Unidos entrou nesse nicho de reprodução mais ou menos na época do processo, provavelmente o que chamou a atenção da Levi’s para o que estava acontecendo. Isso foi logo após a febre por jeans de designers, cheios de costuras, lavagens ridículas, e detalhes no bolso (True Religion, Seven, etc). Pra mim, esse processo aberto pela Levi’s foi um dos marcos mais importantes na comunidade denim head.

Em 2007 a Levi’s processou muita gente. Quase todas as marcas entraram na roda, muitas marcas grandes e pequenas do mundo inteiro. Entre elas estavam duas lojas de jeans nos Estados Unidos e várias marcas japonêsas como a Studio D’Artisan, Iron Heart, Toyo/Sugarcane, Oni, e Samurai, entre outras. Todos foram processados por violarem marcas registradas.

As lojas e todas as marcas tiveram que suspender suas vendas no mundo inteiro e até as alfândegas americana e a japonesa entraram na jogada. Os jeans feitos pelas marcas envolvidas foram proibidos de sair do Japão. Não podia passar nada, nem para as lojas e nem para os clientes.  Os pontos críticos do processo foram:

  • Proíbido ter qualquer etiqueta presa entre dois pedaços de tecido no bolso de trás (aquela etiqueta vermelhinha da Levi’s).

  • A etiqueta informativa enfiada no bolso de trás, ou grampeada, não pode lembrar um tag moderno ou antigo da Levi’s. (aquele papelão que vem no bolso das calças Levi’s)

  • Os arcos costurados no bolso de trás não podem lembrar os arcos da Levi’s.
  • O patch de couro na cintura não pode conter a imagem de dois objetos em movimento (cavalos, motocicletas, porcos, etc…) puxando uma calça jeans.

Qualquer produto com qualquer dos pontos mencionados teve que ser removido das prateleiras de todas as lojas do mundo! O negócio foi global, mas esses são exemplos de alguns produtos japoneses que saíram do mercado:

Um dos patches problemáticos, da Studio D’Artisan.

Tag da Warehouse

Arcos e a tag vermelha em um jeans Samurai

Arcos e o tag vermelho em um jeans Fullcount

A Levi’s estava super certa, mas é preciso entender que todas essas marcas faziam referência à Levi’s com muita reverência e respeito, tanto pela marca quanto pela história do denim. Não era uma vontade de surfar na onda da Levi’s e roubar ideias, é simplesmente porque pra eles, aquilo era jeans.

Ninguém sabia o que as marcas japonesas iriam fazer, mas os fabricantes do Japão colaboraram com o processo e rapidamente começaram a produzir jeans com nenhuma costura no bolso de trás ou com costuras muito diferentes da Levi’s. E assim, a ação abriu mais um capítulo no design e fabricação de denim e nos levou ao ponto que estamos hoje. Algumas mudanças:

Patch novo da Imperial Denim

Arte na tad do bolso da Sugar Cane

Patch de couro da Iron Heart com a Self Edge. Marca e loja que sofreram com o processo.

 

Todas as marcas bolaram ideias para etiquetas, costuras, etc. Elas trabalharam em conjunto com as lojas americanas e mandaram super bem, criando patches super clasicos, originais e atemporais, revelando a verdadeira personalidade de cada uma. Foi como se as marcas do Japão tivessem se libertado das amarras que as referência culturais criavam. Desse momento em diante, um par de jeans Samurai de outra marca repro passou a ser ele mesmo, sem precisar de atender o cliente cumprindo os detalhes da Levi’s. Vieram novas modelagens, novas colaborações, novas misturas no tecido, mais cores, e muitas ideias, até mesmo arriscando sair um pouco do “raw” para brincar com lavagens, patchworks, e misturas com elentos orientais.

A mistura de jeans com sashiko, da Kapital.

Outro ponto positivo foi que a LVC entrou na briga e começou a usar a sua tão importante propriedade intelectual para fazer jeans bacanas novamente. Eu curto demais o branding da Levi’s: O arco costurado no bolso, os dois cavalos tentando arrebendar um jeans, a etiqueta, com o big E ou small E, dependendo da época. Só que na época desse processo, e até mesmo hoje em dia, a Levi’s estava longe de ofertar um jeans com estes detalhes que competisse com o que as marcas do Japão estavam fazendo.

A qualidade da linha LVC (e também tinha a Orange Tab na época) não impressionavam. Essas linhas da Levi’s não criavam produtos para atender o nicho de reproduções do jeito que essas outras marcas estavam fazendo. Foram essas pequenas macas criaram e alimentaram um mercado que a Levi’s deixou passar, e depois veio cobrar um pedaço. De certa forma, as marcas de homenagem elas fizeram um favor ao associar seus produtos de qualidade muito mais alta com essas referências Levi’s, mantendo esses detalhes vivos e relevantes por ainda mais tempo.

LVC acabou relançando várias edições do jeans 501, cada uma numerada por ano.

Estamos em 2015 e a febre pelos jeans que reproduzem calças antigas caiu bastante. O nicho ainda existe, e vai muito bem, mas não se vê mais grandes veículos e nem blogs grandes falando sobre esse assunto como faziam em 2010. Ter um jeans raw/selvege virou básico… a Gap tem, a Uniqlo tem, e se bobear até na Zara você encontra esses detalhes que os pioneiros dos anos 80 resgataram. Muita gente que entrou na moda já trocou seus jeans brutos por calças moleton, jeans preto skinny ou calças com lavagem e percebe-se que se vestir como “worker” já não é mais cool nos circulos fashion.

O que temos hoje é algo diferente. São marcas japonesas lançando jeans diferenciados, brutos, com cortes modernos e elementos de design muito interessantes. Parece que o jeans o processo contra a Levi’s libertou os japoneses de uma versão romântica que eles tinham da marca americana. É fato que até hoje eles admiram os produtos vintage, e não deixam de respeitar a história, mas me parece que agora conseguem se ver no mesmo patamar como competidores em um mercado global.

Outro legado dessa ação, além de realmente termos uma LVC melhor, foram as novas marcas americanas, que só surgiram graças ao desbravamento feito pelas pioneiras japonesas. Essas marcas fazem nos Estados Unidos o que a Levi’s deixou de fazer quando fechou a sua última fábrica americana. A nova geração americana faz suas calças em casa, com denim da histórica Cone Mills ou das fábricas de Okayama.

Roy Denim

Rogue Territory – Feito em Los Angeles

3 Sixteen – Feito em NY

O jeans está aí há mais cem anos e não deve ir a lugar algum. Oito anos depois, e talvez o legado do processo da Levi’s contra o mundo tenha sido acordar a Levi´s, que saiu da zona de conforto, e liberar os entusiastas do denim de uma versão romântica que eles tinham da Levi’s, para enfim construirem o seu próprio legado.

Ver Comentários

  • Cacete, que texto foda! Parabéns pela pesquisa e pelas informações! Trabalho com malharia e camisaria masculinos mas nunca trabalhei diretamente com denim em geral, meu conhecimento de técnicas é muito superficial, coisas que migram da malharia para o jeans e vice-versa. Esse texto me deu vontade de procurar e saber mais desse universo.
    Parabéns novamente e um grande abraço!

  • Eu tenho uma casa q tem o (L) escrito ainda de forma antiga e na etiqueta diz q é de São Francisco.
    Será q algum colecionador se ingressaria?

    • Oi Clarice. A letra "E" é maiúscula ou o minúscula? É essa letra que eles conferem.

Publicado por
Lucas Azevedo